quarta-feira, 30 de julho de 2008

lipelille - boa noite

quarta-feira, já noite. O que por aqui quer dizer pelas 18 horas.
Dois dias especiais, de confronto e reflexão.
Ontem passei a manhã na aldeia de Macasselane. Pela primeira vez participei na mesa de S. Nicolau desta localidade. Cheguei de manhã com o fr. Xavier, atravessando de novo a paisagem já mais familiar de cajuaeiros e algumas machambas, secas por causa da pouca chuva deste ano. Lá chegamos nós à clareira sob grandes e velhos cajueiros onde os meninos comem, e onde se prepara a comida, em grandes panelas sobre lume de chão, num pequeno alpendre, no que se poderia chamar arquitectura tradicional: colunas em trono de árvore e chapa de zinco como telhado. Rústico, simples, bonito e eficaz. Melhor arquitectura moderna não há.
Lá me esperavam as mamãs Maria, Alice e Matilde. Fiquei com elas a manbã inteira, ajudei-as a preparar o almoço, aprendi umas palavras em changana, e rimos todo o tempo, eu ouvindo-as falar enquanto limpávamos o arroz, sem perceber nada, claro está, e elas com as minhas perguntas sobre como se diz em changana uma data de coisas. Até construí pequenas frases, como esta, que foi motivo de muito riso: mulungo uthira, mulungo uga uco. Branco trabalha, branco come galinha (que era o almoço e estava bem deliciosa!). Prmeira manhã verdadeiramente aldeã. Foi muito bom. Elas surpreenderam-se por eu não aceitar a cadeira que colocaram especialmente para mim, por querer eu também trabalhar com elas, e eu com a simpatia e o seu bom humor. Fui de facto muito bem recebido. Ali, ao fumo da lenha ainda verde, à sombra de uma grande árvore, espreitando curioso os olhares ainda mais curiosos dos meninos que se iam aproximando. A vê-las mexerem-se com destreza, a escolhermos o arroz sentados no chão, a beber chá antes de servir o almoço. E olhava em redor e tinha, profundamente ,a sensação de estar realmente aqui, Moçambique, Província de Gaza, aldeia de Macasselane. Tudo, mas tudo, me dizia que estava finalmente ali, concretamente, eu, ali. E afinal, de tanto sonhada, a paisagem tornou-se familiar, o dialecto tornou-se quase compreensível e o chá foi como um momento há muito esquecido que de repente vem à memória. Afinal estou no centro do tempo, e aqui as memória antigas, de um começo longo e maravilhoso, saem da terra seca e entram-nos no sentido. Memórias de um tempo ancestral, em que o mundo apenas começava, e onde a vida se vive em comunhão com a mãe terra. Até o ritmo seco, compassado, de uma canção cantarolada, traz ao presente raízes muito antigas, que espelham este mundo diferente e original.
Ali estava eu, com aquelas mamãs, com aquelas crianças. Mesmo ali. E isso é muito bom. Poder partilhar da sua vida, conversarem comigo, darem-me parte do seu tempo, quererem comunicar. As crianças olhavam com muita curiosidade e riso contido, mesmo quando eu lhes falava e perguntava alguma coisa. É muito bom de estar, aqui, nesta vida verdadeira, escondida, longe do turismo e perto das pessoas. Num local incógnito, pequeno, e poder perceber, ainda que levemente, a vida que aqui realmente se leva.
Regressei com um grande sorriso no olhar e no coração.
Ao início da noite fui ajudar a servir o jantar aqui no centro nutricional. Sou ainda muito tímido com as mães que aqui estão, e elas comigo. Gosto de estar ali, e tenho vontade de comunicar mais. É bom saber que estas crianças que aqui estão se vão alimentando, e crescendo. É um trabalho impressionante! Porque salva, em verdade, a vida destas crianças. E é bom presenciar a sua salvação. Traz muita esperança.
Hoje estive na mesa aqui de Manjacaze, num espaço da paróquia aqui ao lado de casa das irmãs. Os meninos comem num telheiro, e a cozinha é uma construção pequena, com paredes de caniço. Hoje sim, foi uma verdadeira aula de changana. A manhã inteira a fazer perguntas á mamã Gertrudes e à Marcélia e Esmeralda, as cozinheiras daqui. Rimos, rimos e rimos. Mais tarde apareceu o Elcídio, menino da nona classe, que me foi ensinando mais palavras, e me ajudou a distribuir as fotografias que tinha para lhes entregar. Todos os meninos, muito calados comigo perto, ao verem as fotos uns dos outros, finalmente desataram a rir e falar alto! Até já me disseram até amanhã, o que já é um grande passo de aproximação. Parece-me que daqui para a frente vamos conversar e brincar mais.
Estes dois dias têm sido muito bons, mas ao mesmo tempo difíceis. No sentido de que me questionam sobre a minha presença aqui. Que fazer? Como me aproximar, como dar o que é preciso? Como criar continuidade, sem ficar tudo num bom tempo passado sem consequências. Que missão é a minha? Talvez mostrar que me preocupo, falar e brincar com estas crianças. Grandes dúvidas se põem sobre como melhorar a sua vida e sermos capazes de lhes abrir um futuro bom. Que é o que todos merecem, aqui e em todo o lado.
Quem me conhece melhor deve ter reparado que, contra o costume, não tenho descrito assim tanto a paisagem nem o sítio onde me encontro. Sabem de uma coisa? Isso é bom, porque realmente, apesar da paisagem ser incrível, e de estar a viver o desejo de estar em solo africano, os dias têm sido passados em contacto com muitas pessoas. E tem sido o mais importante deste tempo. Sim, fascina-me como as mulheres se balanceiam devagar, capulanas coloridas a fazer de saia, com bidons de água na cabeça. Fascinam-me os olhos muito abertos das crianças curiosas. Fascina-me o som do changana, apesar de não perceber 99 por cento do que dizem. Mas fascina-me porque são estas as pessoas com quem estou, quem queria conhecer antes de vir, de quem tinha ouvido tanto falar. Fascina-me porque também eu fui buscar água ao poço aqui para a mesa, e dei aos braços para a água sair, e carreguei com um bidon de água (durante pouco tempo, e sim, ainda tentei trazer na cabeça, mas caiu e foi a risota geral!!). Tudo o que me encanta aqui parte do contacto directo com esta gente boa. Não sáo números nem notícias. Manjacaze deixou de ser um lugar no mapa de Moçambique para começar a entrar lentamente na minha geografia pessoal. Isso o sinto com muita intensidade. E este céu estrelado da noite faz já parte do que serei daqui em diante, e espero sinceramente conseguirmos desencantar projectos, ideias, sorrisos e força, apenas para dizermos a todos aqui que podem e são muito mais do que estão agora. Fazê-los compreender como reconhecemos a sua dignidade. E como afinal as distâncias são muito mais interiores que naturais. E como a realidade pode ser bem diferente do que é. Para todos. Porque eu aqui, e digo-vos sinceramente, até porque já o desconfiava, sinto-me a crescer, a alargar horizontes, a comunicar. Se calhar não sou eu que venho em missão, mas venho ser “missionado”.
Deixo-vos com sons de cantos ao longe. Deve ser uma festa. Ouvem-se risos, e lentamente a vila vai acalmando. Daqui a pouco tempo apenas se ouvirão os grilos e as rãs ao longe.
Assim é este tempo, dom imenso na minha vida. E me lembro de todos vocês, que aqui estão também. Sintam-se em casa, aqui em Manjacaze!
Até mundzuco! Até amanhã!

terça-feira, 29 de julho de 2008

primeiro dia mais a sério

28.07.08
Primeiro dia de “trabalho”. Depois da missa ás seis horas da manhã, hora em que o sol invernoso ainda anda a ganhar coragem para se levantar, um pouco com a abertura do jardim infantil. Hoje começam as aulas depois de duas semanas de férias. As crianças olham com timidez, mas lá saltam com os jogos da Tassy.
Parti com o fr. Xavier para a aldeia de Macasselane, onde existe uma das duas mesas de S. Nicolau, um serviço de refeições para as crianças mais carenciadas da escola local. A primeira impressão da aldeia e das pessoas responsáveis por preparar as refeições foi muito boa. Infelizmente não havia alunos na escola e não houve refeições. O caminho faz-se por estrada de terra batida por uns 8 quilómetros, atravessando um arrozal seco devido á pouca chuva e cajueiros. O local de refeições é debaixo de uma grande árvore, e a cozinha a céu aberto, porque só agora este mês se vai construir um telheiro com a ajuda de um grupo de italianos que estão quase a chegar.
De volta a Manjacaze observei como funciona a mesa daqui. Vieram poucas crianças, mas funcionou. Muitas delas apenas têm esta refeição por dia, e isso nota-se na vontade com que comeram um prato cheio de arroz e feijão. Algumas vêm antes da escola, outras depois das aulas. Não consigo por em palavras o que me abalou hoje olhar aquelas crianças e saber algumas histórias de vida. A fome é sem sentido, e acreditem que estar ali tocou-me muito mais que eu esperaria. Tudo o que vemos na televisão ou em filmes não é a verdade, porque é de longe mais dura e difícil de entender. Fiquei impressionado. E de repente nem a beleza da paisagem nem o sol e este céu magnífico foram capazes de alterar o sentimento triste que senti. Nada disso contou naquela altura. Como não conta ao ver os relatórios do hospital das crianças que estão aqui no centro nutricional. Só vendo escrito, a caneta, no papel, hiv – positivo, e depois outro, e outro, e outro, e depois olhar as crianças nos olhos…
Não consigo não ter esperança de que um dia todo este sofrimento acabará, mas hoje, de facto, não tenho o coração muito feliz. Sei que mesmo assim muito é feito, e que milagrosamente muitas pessoas sobrevivem, e até vão sendo felizes, e que hoje muitas crianças tiveram a possibilidade de comerem pelo menos uma vez ao dia, e que muitas vão à escola, e que haverá com certeza futuro, mas mesmo assim sinto-me triste. É muito compensador ver por exemplo as crianças aqui do centro nutricional a serem alimentadas e tratadas. É. É bom ver o jardim infantil cheio de crianças risonhas que brincam. Ir ao mercado e perceber a vida que teima em não acabar, o movimento, o falar alto, os chapas, e perceber que mesmo assim tudo mexe e vive. Mas agora, depois de rezar tudo isto, sinto-me fraco. Vergonhosamente fraco. Frente a mamâs, homens e crianças extraordinariamente fortes. Isso sim, é um milagre, e é um dom de Deus eu poder vivenciar tudo isto. Para que perceba o que é a vida. Não a nossa vida, as minhas questões. Mas a VIDA. Que existe misteriosamente por detrás de um olhar cansado e mortiço, de um estômago vazio e de uma vida dolorosa. Esse confronto é difícil, mas essencial. E, apesar de tudo, faz-me bem. Ensina-me. Abre-me.
Agradeço por isso.
Agora mais tarde, depois do jantar, quase dez da noite, hora do sono. Um pouco mais confortável cm tudo isto que sinto. O jantar foi animado, como são sempre as refeições. É incrível como depois de dias cheios com todas estas questões as irmãs têm bom humor, e esperança. Faz-me muito bem estar aqui com elas. Ajuda-me a querer ficar e trabalhar.
O tempo passa de modo diferente. Em algumas coisas ainda estou demasiado em Lisboa, noutras parece-me que já cá ando há muito tempo, porque tudo é novo e vem ao meu encontro com força. Amanhã outra viagem a Macasselane, por entre a paisagem magnífica desta região, sorrisos, crianças. Expectativas. É bom estar aqui, e antes de entrar no quarto olhar o céu, hoje com algumas nuvens, e perceber que estou de facto muito a sul, em moçambique. Mesmo! Amanhã é outro dia!

Hoyo hoyo!

28.07.08

Hoyo hoyo! É assim que fui recebido. Kanimambo, respondi. Bem vindo sinhor Pedro! Obrigado, respondo.
Finalmente em Manjacze! Aterrei no Maputo depois de uma longa viagem. De manhã, lá se abriram as persianas das janelas do avião e lá estava África a 10 km abaixo de mim. À saída do aeroporto lá tinha as irmãs Tassy e Emília à minha espera. Maputo parece bonita, mas passámos apenas, e depois do almoço, de ir ao supermercado e ao mercado do peixe, lá viemos nós pela estrada nacional, primeiro, e depois por estradas secundárias até manjacaze. O caminho fez-se com o por do sol glorioso deste lado do mundo, e com a cabeça de for a da janela a ver o céu incrivelmente estrelado e os grandes e antigos cajueiros iluminados pelos faróis do carro. Depois de bastante tempo em estrada de terra batida, finalmente luzes, e lá estávamos nós em Manjacaze. A vila organiza-se em torno de uma larga avenida central, com jardim no meio, e poucas ruas em redor. A maior parte das casas encontra-se espalhada por entre as árvores, e a vila parece mais pequena do que é na realidade. Coqueiros, acácias e cajueiros são as árvores mais comuns, e algumas outras que não conheço ainda o nome. No dimingo de manhã visitei aqui o centro nutricional, junto á casa das irmãs, onde algumas mamãs ficam com as crianças enquanto estas recuperam de desnutrição. À tarde fomos até Chidenguele, uma vila a Norte, perto do mar. A paisagem é linda, e a estrada de terra batida percorre mato e zonas de muitos cajueiros, até chegarmos à vila. Tem uma enorme lagoa, e depois de uma colina, lá em baixo, o Índico!
Vêm-se de dia muitas aldeias espalhadas pela vegetação, com palhotas circulares de quando em quando. Muitas pessoas pela estrada, com feixes de lenha à cabeça para venderem nas vilas e aldeias, muitas vezes a muitos quilómetros de distância. É de facto um novo mundo e uma nova realidade que olho com intensidade. É extremamente visível a pobreza da região, e a distância enorme do bem estar e do futuro que se sente na cidade. Estamos no interior, não tanto em termos geográficos absolutos, mas em termos reais. Vou-me esfornçando por entender esta vida de aqui, os ritmos, as carências, a cultura. É de facto muito, muito diferente.
No domingo de manhã a primeira missa africana, mocambicana. Que privilégio! No altar o fr. Xavier, falando portonhol, na assembleia Manjacaze e arredores, com batuque, as vozes femininas ritmando com os graves das vozes masculinas. O ritmo cadenciado que marca a celebração. Fui apresentado à comunidade pelo fr. Xavier, e disse poucas palavras, traduzidas para Changana pelo sr. Cossa, tradutor da homilia do fr. Xavier. Uma personagem deveras única! Gostariam de certeza de o conhecer! Senti-me observado, a colhido, motivo de curiosidade. Os olhares eram de curiosidade e simpatia. Sorrisos.
Estou feliz! Muito há ainda por contar, mas não encontro as palavras neste momento.
Por isso fiquem com a certeza que me sinto longe, muito longe, com pessoas novas com quero muito estar. Estou bem.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

É hoje!

Finalmente chegou o dia! estou ansioso, feliz e inquieto.
Meus amigos, até Manjacaze!

quinta-feira, 24 de julho de 2008

A véspera

Hoje é o último dia completo em Lisboa antes da minha partida. Só o facto de me imaginar a passar a porta do avião, a colocar o cinto e a sentir o impulso da descolagem me deixa com insónias de tanta ansiedade. Moçambique! África!
Existem lugares e pessoas tão carregados de significados, de histórias e de sentidos que apenas o pensar o nome nos fazem sentir em viagem. África é assim para mim. Penso a palavra e é o continente inteiro que me chega aos sentidos, imagens, histórias, cores, cheiros imaginados, horizonte, natureza. A palavra vem carregada como as núvens das monções, e é o dilúvio cá dentro. Moçambique faz parte desses meus lugares míticos. O Índico é a minha ponte que une a minha esimada costa indiana e este novo mundo que estou prestes a descobrir.
Viajar é muito bom. Eu pelo menos em viagem sinto-me na minha dimensão mais volátil, e apercebo-me da pouca solidez da realidade, sempre em crescimento, sempre diferente. Faz-me querer viver tudo intensamente, porque há tanto para conhecer. As certezas ficam no nosso lugar no avião, e quando desembarco num outro espaço e num outro tempo levo-me a mim mesmo e sinto-me mais leve. À medida que o tempo passa até a bagagem fica mais leve.
Fui percebendo que viajar faz parte de quem sou. Talvez a minha vocação seja essa, descobrir, viver de novo, olhar, conhecer, e não uma profissão ou um estado civil. Será que posso passar recibos verdes disso? profissão - pessoa que gosta de viajar. era bom.
Bem, esta viagem é uma viagem de trabalho, de missão, de labuta. Mas por vezes parece-me que não sou eu que vou em missão, mas que é a missão que me espera, para me dar um novo mundo.

Aqui fica uma saudação muito especial aos amigos do grupo Missão Mundo! Companheiros de um projecto feito a várias mãos e várias personalidades, desejos e cumplicidades.
E, claro, um grande abraço a esse Moçambique que me espera. Que eu seja merecedor da sua generosidade.

Até manjacaze!!!