terça-feira, 29 de julho de 2008

primeiro dia mais a sério

28.07.08
Primeiro dia de “trabalho”. Depois da missa ás seis horas da manhã, hora em que o sol invernoso ainda anda a ganhar coragem para se levantar, um pouco com a abertura do jardim infantil. Hoje começam as aulas depois de duas semanas de férias. As crianças olham com timidez, mas lá saltam com os jogos da Tassy.
Parti com o fr. Xavier para a aldeia de Macasselane, onde existe uma das duas mesas de S. Nicolau, um serviço de refeições para as crianças mais carenciadas da escola local. A primeira impressão da aldeia e das pessoas responsáveis por preparar as refeições foi muito boa. Infelizmente não havia alunos na escola e não houve refeições. O caminho faz-se por estrada de terra batida por uns 8 quilómetros, atravessando um arrozal seco devido á pouca chuva e cajueiros. O local de refeições é debaixo de uma grande árvore, e a cozinha a céu aberto, porque só agora este mês se vai construir um telheiro com a ajuda de um grupo de italianos que estão quase a chegar.
De volta a Manjacaze observei como funciona a mesa daqui. Vieram poucas crianças, mas funcionou. Muitas delas apenas têm esta refeição por dia, e isso nota-se na vontade com que comeram um prato cheio de arroz e feijão. Algumas vêm antes da escola, outras depois das aulas. Não consigo por em palavras o que me abalou hoje olhar aquelas crianças e saber algumas histórias de vida. A fome é sem sentido, e acreditem que estar ali tocou-me muito mais que eu esperaria. Tudo o que vemos na televisão ou em filmes não é a verdade, porque é de longe mais dura e difícil de entender. Fiquei impressionado. E de repente nem a beleza da paisagem nem o sol e este céu magnífico foram capazes de alterar o sentimento triste que senti. Nada disso contou naquela altura. Como não conta ao ver os relatórios do hospital das crianças que estão aqui no centro nutricional. Só vendo escrito, a caneta, no papel, hiv – positivo, e depois outro, e outro, e outro, e depois olhar as crianças nos olhos…
Não consigo não ter esperança de que um dia todo este sofrimento acabará, mas hoje, de facto, não tenho o coração muito feliz. Sei que mesmo assim muito é feito, e que milagrosamente muitas pessoas sobrevivem, e até vão sendo felizes, e que hoje muitas crianças tiveram a possibilidade de comerem pelo menos uma vez ao dia, e que muitas vão à escola, e que haverá com certeza futuro, mas mesmo assim sinto-me triste. É muito compensador ver por exemplo as crianças aqui do centro nutricional a serem alimentadas e tratadas. É. É bom ver o jardim infantil cheio de crianças risonhas que brincam. Ir ao mercado e perceber a vida que teima em não acabar, o movimento, o falar alto, os chapas, e perceber que mesmo assim tudo mexe e vive. Mas agora, depois de rezar tudo isto, sinto-me fraco. Vergonhosamente fraco. Frente a mamâs, homens e crianças extraordinariamente fortes. Isso sim, é um milagre, e é um dom de Deus eu poder vivenciar tudo isto. Para que perceba o que é a vida. Não a nossa vida, as minhas questões. Mas a VIDA. Que existe misteriosamente por detrás de um olhar cansado e mortiço, de um estômago vazio e de uma vida dolorosa. Esse confronto é difícil, mas essencial. E, apesar de tudo, faz-me bem. Ensina-me. Abre-me.
Agradeço por isso.
Agora mais tarde, depois do jantar, quase dez da noite, hora do sono. Um pouco mais confortável cm tudo isto que sinto. O jantar foi animado, como são sempre as refeições. É incrível como depois de dias cheios com todas estas questões as irmãs têm bom humor, e esperança. Faz-me muito bem estar aqui com elas. Ajuda-me a querer ficar e trabalhar.
O tempo passa de modo diferente. Em algumas coisas ainda estou demasiado em Lisboa, noutras parece-me que já cá ando há muito tempo, porque tudo é novo e vem ao meu encontro com força. Amanhã outra viagem a Macasselane, por entre a paisagem magnífica desta região, sorrisos, crianças. Expectativas. É bom estar aqui, e antes de entrar no quarto olhar o céu, hoje com algumas nuvens, e perceber que estou de facto muito a sul, em moçambique. Mesmo! Amanhã é outro dia!

4 comentários:

Macaco Silva disse...

Olá Pedro!

Gostei muito de te ler. A chegada deve ser dura, realmente, mas é preciso deixar a poeira assentar. :-)

Vou passar por aqui com frequência a ver como vão as coisas.

grande abraço,
Pedro

leiteazedo disse...

É tão bom ter tantas notícias tuas. Mesmo que sejam de imagem amargas de pessoas que dão tudo, por tudo para sobreviver. Quero apenas dizer, que mesmo que estejas triste, é importante que estejas aí a viver o que está acontecer, e a contar o que se vai passando.
Para que a dor, a fome, a doença e a morte sejam menos gratuitas. Para que cada rosto, cada olhar, seja um sinal que é urgente a tomada de consciência e o gesto de abertura e amor.


Porque somos todos, um só, e o que sofre um ser humano, sofrem todos. Mesmo que não queiram ver, mesmo que não queiram sentir.
Fiquei chocada com as tuas descrições de tanta beleza e de tanta crueldade. Neste momento, ao escrever tenho um nó na garganta, que é ao mesmo tempo as saudades que já sinto, e a revolta por tanta injustiça. Não tinha de ser assim, e no entanto, sabia que era assim, mas de forma abstracta e distante. Contigo a viver tudo isso, a realidade tornou-se mais concreta, estou também aí contigo.
Por isso tudo isto, e como o Pedro diz, deixa a poeira assentar.
Beijinhos

henshin disse...

Olá

É tão bom ter notícias tuas como é difícil não esquecer que essa realidade existe...

Escreve mais que é bom ler-te!

abraços
rui

ritacatita disse...

já estava à espera do que nos revelam as tuas palavras! agora talvez percebas melhor a minha falta de motivação em ir a áfrica! Já passei por isso no Brasil - não conseguir contemplar a beleza da natureza por força da pobreza a rodear-me! É muito complicado! Conseguir usufruir do luxo de turista sem o que está à volta nos tocar. Quem manda sermos esponjas emocionais! É impossível ficar indiferente e não ficar triste por nos sentirmos impotentes.
Estava a ler o teu texto e a análise que me vinha à cabeça é precisamente a que tu fizeste, por isso,assino em baixo!
Essa vivência única que estás a passar é, de alguma forma, a que tenho vivenciado com as histórias das minhas tias africanas ao longo da minha existência e que me fizeram perceber que as pessoas podem ser felizes com tão pouco, mesmo quando o mundo parece estar a desabar à nossa frente. E que a vida em áfrica é uma constante sobrevivência. Os valores da vida são outros. Mas às vezes acho que são mais felizes que nós à sua maneira. Ao relatares a alegria das madres ao fim do dia fazes-me lembrar as minhas tias a contar histórias trágicas, a teatralizar, e a rir à gargalhada com a sua própria desgraça, como uma forma de ultrapassar os problemas - enfrentando-os, relativisando-os! Como uma catarse!!
A minha experiência de ensino durante estes 10 anos tem sido de certa forma em áfrica portuguesa ou mais portugal africano onde todos esses problemas existem, numa escala menor, e que nós, professores, tal e qual como as minhas tias, para não eloquecermos os transformamos em sessões de catarse onde damos por nós a rir no meio de tanta desgraça - é a sobrevivência! e é muito bonito saber que no meio disso tudo há espaço para rir, é o que lhes resta! O sere humano é impressionante. Consegue ser muito mais forte do que pensa, e encontrar alegria onde ninguém vê? Mas, como tu dizes, realmente é uma grande aprendizagem que não te permitirá regressar o mesmo!
A Sida é um problema que tento combater aqui com os meus alunos imagino a tua sensação aí! mudar mentalidades e culturas não é um trabalho visível a médio prazo e faz-nos sentir impotentes! Muita coragem e persistência!!!
bjs

RC