domingo, 17 de agosto de 2008

memórias e questões, com céu nublado ao fundo

17.08.08
Noites de lua cheia em Manjacaze. A noite é clara, o céu fica como se o dia estivesse prestes a nascer. As árvores têm sombra, e as folhas ficam brilhantes da luz branca da lua. O por do sol aqui é muito bonito, com o sol a prolongar-se pelo céu laranja. Um dia destes, ao chegarmos a casa, olhei para as ruas do bazar, e a luz do fim do dia transformava a paisagem. A poeira que anda incessantemente no ar brilhava com a última luz do dia, e tudo, as ruas, as lojas, as pessoas, tudo estava coberto por esse névoa dourada, quase opaca. O pó da terra que durante o calor nos chateia tornava-se numa neblina luminosa e viva. Esta luz africana! Este tom dourado e forte que a cada manhã se espalha pelo mundo, esta paisagem bonita que atravesso a cada ida ao nascer do dia para Macasselane. Inspira-me, e traz-me o ruído do dia que começa e da vida que até durante a noite não pára de acontecer.
Hoje, domingo, o dia tem estado cinzento, um dos raros dias invernosos aqui em Moçambique desde que cheguei. Invernoso na cor, porque o calor mantem-se, apenas um vento algo fresco e forte. Nota-se que lentamente o sol fica mais forte, o calor do meio-dia cola-se mais ao corpo, e os músculos sentem mais o peso do sol a pino. A sombra é cada vez mais apetecível, especialmente enquanto carregamos blocos e fazemos cimento durante a hora do almoço das crianças, enquanto esperamos pela nossa vez de almoçar, sentadinhos nos bancos de madeira sob a mafurreira junto da nova construção que toma já forma de casa.
Os avanços desta semana têm sido realmente notáveis. Estamos já no final das paredes, que concluiremos amanhã. O carpinteiro começará em breve o trabalho do tecto, enquanto nós batemos o pavimento para assentar o cimento do chão. Falta ainda muita coisa por fazer, incluindo rebocar e pintar, mas, ao final do dia, antes de regressarmos a casa, ao olhar para o que se tem feito, fico admirado. Especialmente pelo modo como tudo tem decorrido, como o nosso estimado refeitório tem crescido com a ajuda de muitas pessoas, sob o olhar contente e ainda curioso das crianças. Esta semana colocámos os blocos até ao topo das janelas, as vigas que rematam as janelas e a porta, e ontem ainda colocámos os blocos finais em duas das paredes. O processo demora mesmo assim menos do que eu esperava. Os andaimes são feitos de troncos cortados à medida que vão sendo precisos. Como apenas temos três tábuas fortes o suficiente para andaimes, temos de as mudar cada vez que colocamos blocos numa nova parede. E de novo se muda a altura dos andaimes, cada vez mais perto do topo das paredes, e assim se vai construindo. Nos últimos dias tenho-me dedicado à ilustre tarefa de partir pedra. Sentado num bloco, juntamente com outros papás, de martelo na mão, partindo pedra e restos de blocos de cimento em pedaços pequenos o suficiente para serem utilizados. As costas vão-se ressentindo, mas o que é bom estar ali, em silêncio, ouvindo a conversa dos papás em changana, ou conversando com eles sobre muitas coisas. Um dos papás é especialmente simpático. Ou melhor, todos são bastante simpáticos, mas um deles trata-me de modo mais próximo, mais paternal. Chama-me São Pedro, que é a invocação da capela da aldeia, mesmo ali ao nosso lado. Eu bem lhe digo que não sou santo, mas ele bem gosta de me chamar assim, e eu gosto também. É uma maneira carinhosa de falar comigo. Diz-me que o melhor era ficar por ali. Que até já tenho um terreno para mim, enquanto aponta para a capela. Eu rio-me. Não sei bem é do quê. Se do inusitado do convite, se da vontade que por vezes tenho de o aceitar.
A rotina do trabalho já me é familiar, e até o cansaço ao fim da jornada me parece fazer já parte de mim.
Gosto francamente de estar aqui, e de fazer o que estou a fazer. Francamente nem é a melhor palavra. Profundamente talvez seja melhor. Não é bem um gostar, mas um sentir que tudo faz sentido, que sou também este tempo e esta vida. Os pensamentos têm-me feito um pouco mais silencioso nos úlrtimos tempos. Uma reflexão mais calada, um olhar mais observador. Começo a conhecer cada árvore daquela parte da aldeia, a conhecer o percurso das sombras, a sentir-me acordar ao tirar água, enquanto olho para os cajueiros que já conheço de cor, ao ritmo do balançar de puxar a água. O caminho até ao poço, o tempo dos intervalos da escola, quando as crianças nos dizem bom dia quando passamos com a carrinha cheia de bidons. Já entro na palhota onde guardamos o material e a água com familiariedade, já sei abrir a porta, já não me sinto a invadir a casa de alguém. Já reconheço os risos, as vozes, o som da lenha a arder na cozinha. O ritual do almoço ,à sombra, a sucessão de tarefas. Partir pedra, carregar os blocos de onde estão a secar até à obra, serrar os blocos que necessitam de ser ajustados, a consistência certa do cimento. Puxa tábua, sobre andaime, coloca de novo tábua, subir o cimento e os blocos, esperar, partir mais pedra. Ver a obra a crescer. O caminho de volta, as curvas, as pessoas que encontramos pela estrada.
Os tempos mais prolongados de silêncio dos últimos dias têm a ver com um olhar de admiração para tudo isto. Como o desconhecido se torna tão familiar. Como consigo fazer o que nunca tinha feito. Como estou bem com quem não conhecia. Como me encontro a mim mesmo, aqui. Creio que a minha vocação na vida passa inevitavelmente por estar deste modo. Talvez a minha maior vocação nem seja fazer alguma coisa, mas estar. Conhecer, aprender, ter curiosidade, perguntar, observar. Aprender a linguagem, conversar, saber como é a vida, o dia a dia, as tarefas quotidianas. Talvez seja por isso que me sinto tão próximo das pessoas com quem passo agora os dias. Porque sou muito curioso em relação à sua vida, às suas tradições, ao seu sentir. E daí me vem o grande prazer destes dias. Não apenas o fazermos alguma coisa juntos. O que mais me emociona é o estarmos juntos. Por isso gosto tanto de aqui estar. Porque me interesso verdadeiramente .Sem juízos, sem crítica. Será este o maior dom que me foi dado, esta proximidade vinda do interesse em conhecer e entender. Sem mérito algum da minha parte, mas algo que me foi dado e que sinto verdadeiramente como dom a desenvolver e partilhar. Muita gente vem aqui para fazer, realizar, transformar, formar, ensinar, desenvolver. Também eu. Mas desenvolver o quê? Quem? Seremos nós, pretensos civilizados e cultos, capazes de ensinar alguma coisa útil? Nestes últimos dias penso que, a não ser a vontade de estarmos juntos, não temos nada para ensinar nem realizar. Mesmo aqui no centro nutricional, o que estas mães e avós precisam é que as ajudemo a cuidar das crianças. E pegá-las ao colo, a dar-lhes mimos. É isso que aqui as irmãs fazem. Não é necessário apenas ensinar-lhes como se faz, mas dar-lhes alento para serem elas a fazerem. Um deste dias uma das avós que aqui está sorriu pela primeira vez desde que aqui cheguei. Ficava sempre sentada, inexpressiva, de olhar vazio, a olhar para a pequena Helena, enquanto lhe dava de comer. Quando regressei dos 3 dias em Maxixe, ao ver esta bebé muito maior e com um ar muito mais vivo e saudável, fiz um sorriso de contentamento e uma festa tão grande que esta avó finalmente sorriu para mim. E não foi por eu lhe ter ensinado coisa alguma, mas por ficar contente por a sua neta estar visivelmente melhor. Porque fiquei genuinamente contente. E essa é a linguagem da proximidade. E agora, finalmente, esta mulher, cansada de uma vida difícil e dura, tem motivos para sorrir e ter esperança. Mas esse milagre acontece por ter alguém ao lado, que a tenta de algum modo compreender. Esta presença parece-me a única possível. Não que eu a cumpra rigorosamente, porque sinto também impulso de fazer, organizar, e melhorar, e outros verbos de acção completamente descabidos em tantas situações. Mas sinto, não sei se acertadamente ou não, que o mais importante é estar junto. Tudo o resto vem por acréscimo. Talvez seja o grande perigo de quem quer ajudar alguém, essa discreta mas vincada arrogância de quem acha que sabe o que é melhor em todas as situações, de quem decide por si mesmo, sem entender quem tem na sua frente. Por isso é tão mais fácil dar dinheiro do que dois dedos de conversa. Exportar programas e necessidades em vez de perguntar o que é realmente útil. Em português muito vernáculo, o pobre é pobre, não é estúpido nem incapaz. E aqui, pelo que vou conhecendo, é digno, valente e sorridente.
Toda a transformação virá de uma presença amiga. Não é assim com Deus? Não entra Ele na nossa vida como companhia, como uma mão amiga, como presença? E não nos deixa Ele decidirmos? É este um dos mistérios maiores, Ele querer estar aqui, comigo, com todos. Sem decisões unilaterais, sem ong’s, sem projectos complexos, sem estruturas burocráticas, sem carreiras promissoras nem cursos, nem quadros de chefia e comissões de planeamento estratégico e desenvolvimento de campos operacionais. Mas estar aqui. Não há maior esperança, maior dom, que esta simplicidade desconcertante.
Portanto, neste tempo de auto-crítica e reflexão, de experiência iniciática, não me parece possível coisa alguma que não nasça de um gosto e interesse sincero pelo outro, e pelo prazer da sua existência e companhia. E por um profundo respeito e admiração. Não o querer mudar, mas estar ao seu lado na realização de quem realmente é.
Como é que isso se faz? Não sei. Mas parece-me que partir pedra, carregar blocos e almoçar à sombra de uma árvore em alegre conversa pode ser um começo promissor. Possa eu merecer este bem que aqui me é dado.

2 comentários:

Anônimo disse...

OLá mandioca, mulungo, amigo!
sabia-t caranguejo! Antropólogo, não! A verdade é que sempre levas-t "jeito" prá coisa.
Tmbm é certo q tens jeito d Gente,jeito d Homem, jeito de dádiva pra quem t conhece e t procura entender.
Q bem que m faz ler-t. obrgd
bjs

filhadovento disse...

Sim, obrigada. Obrigada pela porta que me abres para esse mundo que é o teu; obrigada por seres os olhos e todos os sentidos dessa Africa que vive já em ti; obrigada por começares a ser em mim.

No outro dia na rádio, ouvi a música de um senegalês que me fez descobrir uma nova realidade: uma cadência, cores, um sabor, um cheiro,... algo que não sei traduzir por palavras, mas que me era desconhecido até aí e que me seduziu e despertou o desejo de me deixar envolver. Viajei sem dúvida para outro lugar onde nunca tinha estado, através da sua música. Quando nos contaste da missa eu entendi como essa música traduzia essa realidade, como a que eu conheci através da música do senegalês. E poderia viajar de olhos fechados conduzida pelos sons
daquela música. (Também os fecho para ouvir os guisos das ovelhas ao recolherem no final do dia e as vozes das mulheres que regressam do campo)
Por isto quero viajar através de ti, quero viajar em ti e que me conduzas por essa realidade onde te encontras e que se encontra em ti.
Os teus olhos serão os nossos olhos, os teus sentidos os nossos sentidos e os teus pensamentos/sentimentos um desafio aos nossos.