quinta-feira, 7 de agosto de 2008

os últimos dias

03.08.08
lipelille! Boa noite!
Caros amigos: já é devida uma explicação da localização exacta do local onde me encontro. Pois aqui vão as coordenadas, antes de passar ao relatórios dos dois últimos dias.
Google earth – Moçambique. Maputo, aproximem um pouco a fotografia. Para Norte, 280 km, fica Manjacaze. Escrevam na busca que vai lá ter. Ora quando já estão a ver a vila, verão, masi ou menos no centro, um grande rectângulo com árvores no meio. É a avenida principal, com um jardim no centro. Fica mais ou menos norte-Sul, creio. Ora bem, com o Norte para cima, do lado direito, no início superior da avenida, que tem uma rotunda no topo, vêm umas pequenas construções no meio de grandes árvores. É o centro paroquial. A seguir, para baixo, vêm uma casa com uma pequena horta do lado direito, de telhado negro, com um jardim por detrás, com uma palhota (moderna, mas palhota), redonda, que é a capela, e um comprido edifício detrás com um pátio e uma grande árvore. É exactamente aí que me encontro. Espero que consigam descobrir. Esta construção comprida tem telhados vermelhos, e tem uma horta nas traseiras. Por detrás fica um edifício maior com telhado verde. É um dos edifícios do hospital da vila. Ora bem, horários: pois o dia começa antes do nascer do sol, com levantar lá para as 5 e 30 (verdade amiguinhos, verdade…), banhito rápido com água fria, temperada por água aquecida na chaleira electrica. Missa às 6 (falhei um dia ou dois…), pequeno-almoço às 7. As crianças começam a chegar à escolinha lá para as 7 e 30, e até á hora de ir para a aldeia fico com elas, e brincamos e cantamos. O almoço tem sido na aldeia, no fim das refeições. Estamos com as crianças até irem para casa, lanche, oração, ajudar a servir o jantar aqui no centro nutricional, jantamos às 7 e 30…e lá para as 9 e 30 daqui já estou a cair para o lado de sono.
Pronto, dadas as devidas informações, passo a relatar os dois últimos dias. No sábado á noite chegou o Alessandro, de Roma, para ajudar a construir o edifício do refeitório da mesa de Macasselane. Já nos tínhamos encontrado em Lisboa há uns tempos. É simpático. Sábado foi jantar mais tardio, mas animado! Portugueses, italiano, moçambicanas à volta da mesa! É mesmo bom!
Domingo, missa ás oito da manhã, aqui ao lado de casa. Nem consigo arranjar palavras para vos conseguir explicar como gosto da música que cantam aqui. Missa viva, animada, feliz. As vozes femininas têm um timbre muito próprio, agudo mas com uma ressonância grave no final, as vozes masculinas muito graves e profundas, o batuque a marcar o ritmo. Músicas cantadas em compasso, geralmente começando apenas uma pessoa, seguida de toda a igreja. Uma sonoridade marcante, vibrante, cheia de vida e tempo. Vozes cheias. E uma melodia encadeada de contrastes, sons secos dos batuques. Conhece-se realmente a alma de um povo pela sua música. Aqui isso é muito verdade. Fechamos os olhos, escutamos, e é a paisagem que ouvimos, o vento nas árvores ao nascer do dia, o calor, as nuvens baixas, a força do sol nascente, a solidão de um horizonte aberto a perder de vista, as grandes distâncias de mato e cajueiros entre cada povoação, em estradas de areia vermelha abertas a direito quilómetros sem fim. É o trabalho de pilar o amendoim em música, o ritmo compassado e igual dos movimentos, a ondulação do caminhar por quilómetros na beira da estrada, a dobra da capulana de padrões coloridos. O sentar-se na esteira a escolher arroz. É de facto uma benção poder viver isso. E enquanto as vozes se suspendem no ar, com uma amplitude que parece sair da terra seca, é toda uma natureza que ganha vida e está presente naquelas vozes, naquela música. É uma profundidade que vem ao de cima e parece falar de algo muito antigo e inicial. E naqueles momentos em que as vozes prolongam os sons das palavras, aquele momento em que se prolonga a nota, toda a criação aparece no seu acto essencial, no recomeço de tudo.

05.08.08
Hoje! Um novo significado para a palavra fundar. Iniciámos hoje a construção do refeitório de Macasselane. Terminámos hoje as covas das fundações.
Estamos de facto a fundar um edifício. A fundar alimento, encontro, esperança, futuro.
Mas fundar mesmo, com pás, enxadas, cavando uma trincheira com o perímetro da construção. Fundar, a partir de hoje, deixa de ser discurso e intenção, e passa a significar escavar. A fundação de algo bom é sempre bonito, e esta nossa fundação ainda é mais bonita. Estamos a alicerçar a nossa construção na terra da aldeia de Macasselane. O projecto da mesa de S. Nicolau fica assim amarrado à aldeia, porque nasce da sua terra, à sombra dos seus cajueiros. O edifício será feito quase integralmente por blocos feitos a partir desta terra que é retirada. É uma ideia bonita, construir com a própria terra. A construção é terra ao mesmo tempo que é edifício. Por isso o refeitório é também aldeia porque feito com a sua matéria.
É portanto nesta troca de significados que iniciámos esta tarefa trabalhosa mas muito feliz.
Esta dimensão poética de todo o trabalho e do modo comunitário como se tem realizado é uma experiência única. Ver e fazer nascer algo com um significado muito para além de si mesmo, e participar no modo gratificante como se dá a sua criação é de facto um privilégio muito grande.
Finalmente as crianças da escola da aldeia poderão almoçar sem estarem sentadas no chão, enxotando as galinhas, e as mamãs cozinheiras terão um espaço mesmo em frente à cozinha para guardarem os utensílios e a água.
Começámos por delimitar a área da construção. E a partir daí foi escavar, escavar, escavar. Até ficar um rectângulo vazio e profundo, na terra arenosa cor de laranja da região. Num dia terminámos as escavações. Fomos muitos. O Alexandre, o Valente, alguns papás, todos da aldeia, e o Alessandro e eu. Para além das mamãs que cozinham também quererem escavar um pouco, no final da refeição. Este é um sentido de partilha muito bonito, vivido de forma simples e aparentemente natural. Mas para quem observa é como observar uma obra de arte. Muito fica por dizer porque muito toca cá dentro.
Uma mamã, mais correctamente seria dizer uma vovó, passou. Vinha da machamba. Sabia para que era a obra, e insistiu para cavar também um pouco. Também ela, com o seu corpo escuro e curvado, após o duro trabalho agrícola, quis ser também parte do que se realizava. É bonito de ver e entender. É uma lição. Mas que dia feliz!
Até as bolhas nas mãos deixam de doer, porque estiveram em contacto com a terra e a gente boa de Macasselane. Posso olhar para estas mãos e perceber enfim que estão em Moçambique, e que constroem, juntamente com muitas outras, uma experiência muito boa. Tenho Macasselane, de modo verdadeiramente sentido, na palma das mãos. E é bom. Muito bom.

Hoje à tarde o fr. Xavier comentava que eu estava feliz. Que era feliz em Macasselane, e fez aquele nosso gesto de colocar o dedo perto dos olhos, como a dizer: já percebi.
E é verdade! Tenho sido feliz ali.

06.08.08
Hoje colocámos restos de blocos partidos, e martelámos para os partir. O verbo martelar não é empregue como metáfora, mas como realidade. Martelámos mesmo todos aqueles tijolos até ficarem em pedaços pequenos, sobre os quais colocámos água, para depois os bater novamente com uns maços feitos de troncos e ramos. Lá estivemos nós, de rabo para o ar e costas dobradas, a martelar, em ritmo cadenciado, toda aquela areia e cimento, de modo a torná-la a base de toda a construção.
Os maços que o Alexandre fez são verdadeiras peças de design, com um pedaço de tronco e um ramo bem escolhidos. Pisámos ainda durante algum tempo até tudo estar quase areia.
Realmente a construção feita manualmente é custosa, prolongada e sofrida. Mas recompensadora.
É assim a arquitectura tradicional, e a sua dimensão essencial que nunca aparece nos livros: o trabalho que tudo dá.

Palhota

Entrei hoje pela primeira vez numa das palhotas em caniço e colmo da aldeia. O exterior é muito bonito, com a estrutura das paredes em caniço forradas por uma mistura da terra local com água, que quando seca fica rugosa e fresca ao toque. O interior, com as paredes também revestida a terra, é sombrio, fresco e silencioso. O telhado de colmo deixa ver a estrutura circular, nascendo do ponto mais alto e baixando lentamente em direcção à terra, numa cobertura que mais parece termos o chão sobre a cabeça. A penumbra do interior, cortada pelo sol que entra pela porta aberta, dá-nos a sensação de protecção e conforto. Contra o horizonte rasgado, o céu muito azul e toda a variedade de formas e cores da natureza africana, o mundo fechado e circular daquele interior é uniforme, neutro, suave e contínuo. Um grande contraste com o mundo sem fronteiras que corre ao longo das grandes sombras dos cajueiros. Dá vontade de deitar sobre a terra húmida do seu chão.
Como será viver numa casa sem cantos nem paredes? É apenas uma parecde contínua, sem aberturas senão a porta. Sem divisões ou esquinas. Parece um planeta inteiro ao contrário, o que se vive é o interior e não a superfície.

Um comentário:

ritacatita disse...

Oi "trolha"!
Essa da arquitectura tradicional deixou.me curiosa pelos pormenores porque por mais que a tua descrição seja minunciosa é difícil perceber...essa cena dos raminhos?? Não percebi, mas depois explicas-me tudo!!
É uma experiência bem interessante essa de ver, e ajudar, a construir com o método da arquitectura tradicional!! Excelente.
Quanto aos coros importas-te de não fazer mais invejinhas, tá!!!!
Não vais dizer que a tua máquina fotográfica não faz pequenos vídeos!? Grava uma missa, vai!!
"Jacometti in moçambique".

Quanto à palhota, ainda não te contei a anedota do gajo que está a arredondar os cantos todos à casa porque a sogra disse que ia lá para casa para um cantinho!!!!!!! Eu não sei se a anedota é bem assim porque sou péssima!
Mas os africanos são espertos, constroem já sem cantos para as sogras não se porem com ideias! É que não há hipótese!!! É muito à frente!

Alvorada às 5h! até doi...

Estou a ver que estás muito mais animado, fico contente!!

abraços afros

RC