quinta-feira, 21 de agosto de 2008

paredes feitas e caminhos mato adentro

19.08.08
Possa eu merecer o bem que aqui me é dado. É a frase última que escrevi. É também o que me apetece dizer neste momento, em noite de lua já não tão cheia como ontem. Acabámos hoje as paredes do refeitório. Falta apenas retirar as cofragens dos pilares nos cantos superiores. Mas acabámos a construção das paredes. Finalmente a casa tem forma, limite, interior e exterior, tamanho. Um dos grandes, antigos e algo doentes cajueiros em redor foi hoje abaixo. É impressionante como uma árvore tão grande pode ser derrubada em meia hora, com serra e catanadas bem pensadas, ramo a ramo, até ficar apenas parte do tronco. Verdadeiramente admirável. Eu ainda estava a pensar como seria possível deitar abaixo o cajueiro sem estragar a construção, e já estava um grande ramo a cair, muito perto de uma das paredes. Aqui parece que tudo se faz assim. É preciso fazer, faz-se. Os meios é que são algo diferentes daqueles que eu já conhecia. E ainda dizem que este país não anda. O país não sei, mas as pessoas andam com certeza, e realizam, e fazem, e trabalham.

Atenção arquitectos:

Construiu-se uma casa sem misturadoras de cimento, sem máquinas de género algum, sem andaimes, sem engenheiros de estruturas, técnicos, sem desenho rigoroso à escala. Utensílios já existentes: 3 pás, uma enxada, 2 espátulas de pedreiro, um nível em metal, luvas de borracha, 2 fitas métricas, fio de pesca, um carrinho de mão. Nada mais. Material comprado: sacos de cimento, ferro, alguns blocos para as fundações. Mais nada. Parece mentira. Faltam ainda as chapas de zinco para o telhado e a madeira para o trabalho do carpinteiro. Como é possível erguer-se uma casa com tão pouca “tecnologia”. Ora passo a explicar. Abrir fundações, com enxada e pás. Marcar os cantos e a ortogonalidade: pequenos troncos pregados em forma de U, espetados no chão. Reforçar fundações: bater a terra com maços. Brita para as fundações: restos de blocos e entulho pequeno, literalmente martelado até ficar em pó. Levantar paredes, com nível e fio de pesca. Fazer blocos: misturar terra local com cimento, e colocar a mistura na forma. Vigas em betão armado: brita, martelada também manualmente, com cofragens de tábuas emprestadas, e muito engenho e arte para tudo ficar no sítio. As cofragens são fixas com arames, que passam por furos feitos nos blocos. Transporte de cimento com os chamados baldinhos, feitos com fundos de bidons e alças de fibra vegetal. Andaimes: troncos de árvore na vertical, bambu na horizontal, atados com os troncos, e entrando na parede já construída por buracos feitos para o propósito. À medida que se aumenta a altura das paredes, a plataforma dos andaimes sobe também, e de cada vez que se muda de parede lá temos de mudar as tábuas todas de novo.

E pronto, nesta sucessão de tarefas, temos uma casa construída. Sólida, bonita, boa. O grande orgulho neste momento da comunidade da aldeia de Macasselane. Bem, é verdade que é também o meu orgulho. Admito-o sem hesitar. Sinto-me orgulhoso de contribuir para esta fundação, e por pensar que daqui a muitos anos, voltando à aldeia, me posso ainda lembrar dos dias passados na construção daquele edifício. Aí virão ao de cima as memórias deste tempo. Por isso mesmo, possa eu merecer tudo isto. Porque percebo que o que vou vivendo não é um tempo fugaz nem passageiro. Aqui, agora, à medida que o tempo passa e as experiências se vão sedimentando, intuo que me vou construindo também. Ao mesmo ritmo que as paredes ganham altura, também eu vou sendo construido por esta vida que aqui levo. Sinto que me repito, mas a verdade é essa. Que daqui fica comigo muito mais do que aqui deixo é uma verdade tão óbvia que nem merece comentários. Parece mesmo um cliché, mas não posso fazer nada quanto a isso. É a verdade. O difícil é tornar essa constatação presente no dia a dia. Viver esse facto com liberdade, sem medo, com horizontes maiores. De há uns tempos para cá tenho alguns momentos de melancolia e ponho-me a observar as pessoas e os trabalhos em Macasselane. Esqueço-me por vezes até de fotografar. Fico ali, a olhar maravilhado, mas com o olhar um pouco desfocado, perdido. Não é tristeza, é antes a constatação do inevitável. De como me responde a vida a tantas questões, e de como quase sempre de maneira imprevista, inédita e, em verdade, muito ao lado do que eu esperaria. E isto implica muito. E implica acima de tudo aceitar as suas respostas, e perceber de uma vez por todas que posso viver sem saber as respostas todas, nem as direcções, nem os finais.
As sombras dos cajueiros vêm-me à memória. A sua silhueta difusa e fresca. E leio o que escrevo e nada disto diz o que quero dizer. Será muito mais simples. Absurdamente simples. Cada vez mais me vou convencendo que a vida é muito mais chã que parece. Apenas as escolhas podem ser cruzamentos mais agitados, mas o mundo é grande e não se consegue estar em todo o lado, nem conhecer tudo. O que é uma das maiores chatices das limitações humanas.
Tudo isto me vem ao pensamento à medida que relembro o dia e a satisfação de aqui estar e de tudo ser verdade. Portanto, à medida que se constroem paredes, é um pedro que se vai alteando, bloco a bloco, com betão armado, é certo, para as partes mais delicadas. E, esperemos, com uma bela pintura final.

20.08.08
Amanhã colocarei uma imagem da construção como está, com as paredes completas. É merecido.
Quanto a hoje, meus irmãos, a manhã foi um desses raros momentos que a vida nos trás, inesquecíveis, marcantes, que nos mostram quem somos. Hoje a obra está parada, a secar, à espera que amanhã chegue o carpinteiro para começar as asnas do telhado. Por isso, como chegaram já há dois dias o padre Ítalo e a Paola, de Itália, fomos visitar um menino a quem foi dado o nome do padre Ítalo. Seguimos pela estrada principal, mas a certo momento cortamos. E aí começa o maravilhamento. Continuamos tempos e tempos por uma pequena estrada de areia, mato adentro, cada vez mais longe de qualquer comércio, estrada, movimento. Apenas os cajueiros e as árvores da massala, pequenas machambas, e caminho, caminho. E a noção de nos perdermos cada vez mais neste interior profundo e longínquo. Pequenas aldeias de vez enquando, cada vez mais pequenas e dispersas. Viramos de novo, para um caminho ainda mais estreito. Mais quilómetros nesta paisagem quente e sedutora. Dá vontade de seguir a pé, descobrindo cada árvore, cada caminho, cada som. Chegámos enfim a um pequeno conjunto de palhotas e uma casa inacabada de tijolo. É da família do pequeno Ítalo. Família alargada, como sempre por aqui. Ritual do acolhimento: cadeiras no exterior, sentamo-nos e ali ficamos um tempo, para os cumprimentos e saudações. Fico expectante, ando um pouco, observo e calo-me. Mesmo por dentro fiquei calado. E ainda bem. Pude observar a bondade e a simplicidade daquelas pessoas. A sua presença amiga, a dureza da sua vida. Pude sentir a recepção amiga e reconhecida pela visita. Confesso que, deparando-me com algumas situações um pouco duras, que não escrevo neste momento porque sinto ferir a privacidade de quem me recebeu tão bem, me afastei um pouco a fingir que observava a paisagem. Mas não. Rezava e perguntava como é possível esta realidade, ao mesmo tempo tão agreste e tão calorosa. Como é possível a vida tão longe, num outro tempo distante, que começa onde termina a estrada e começa o mato sem fim. E senti um respeito enorme por aquelas pessoas, mesmo perguntando-me a razão de muitas coisas que me impressionam. Mas eles sabem muito melhor que eu como sobreviver por aqui. E isso confere-lhes uma dignidade que apenas o silêncio agradecido mostra reconhecimento. E por isso, sentei-me de novo e fiquei. A mãe do pequeno Ítalo reparou na minha presença, e colocou-me a criança ao colo depois de a adormecer. Fiquei feliz. Era um modo de comunicar. De dizer bem-vindo. Mais tarde fui ter com a mamã Rosa, que assava castanha de caju. Sentei-me a observar, e quando começaram a partir a casca assada pedi para experimentar. As crianças riam-se. A avó do pequeno Ítalo ofereceu-me a sua capulana para colocar por cima das calças, para não me sujar. E ali fiquei eu, com a mamã Rosa, partindo castanha de caju. Mas que tempo bom! Uma nova experiência, uma espécie de intimidade vivida no silêncio e em alguma conversa que surgia. Como me senti próximo e irmão. Que privilégio poder partilhar do seu trabalho, das suas rotinas, da sua vida. Se há teologia que nos mostre Deus, é esta. A teologia da proximidade, do trabalho e da presença. Sem palavras nem explicações, nem pensamento nem teoria. Ali, durante toda esta manhã, vivi. Foi um tempo da minha vida que realmente, profundamente, vivi. Como se durante um tempo viesse ao de cima quem sou. E não era nada mais do que estar ali. Não sei como vos explicar, posso dizer que fiquei de lágrimas nos olhos. Como quando na despedida, o avô da casa explicou que tinham muito pouca comida, que nos queriam oferecer um almoço bom, mas que não tinham quase nada, e mesmo assim ofereceram-nos duas galinhas e o caju que descascámos. Quando rezaram e cantaram para nós, como agradecimento e despedida, e esse mesmo avô, de lágrimas nos olhos, agradeceu a visita. Também quando depois ainda fomos a casa da mamã Rosa e nos ofereceram refrigerantes e bolachas e cantaram de novo para nós. O que podia eu fazer senão emocionar-me, rezar por dentro e sentir-me profundamente agradecido por tudo aquilo? Até a máquina fotográfica se calou. Fui incapaz de a tirar sequer do carro. Pareceu-me ferir aquele momento. Fica comigo. Poucos são os momentos em que perdemos a vontade turística de registar esta realidade, como recordação e interesse etnográfico. Ali não fui capaz, nem me fazia qualquer sentido. Ali eram eles, na sua dignidade, que me espantaram, e isso não se fotografa sem invadir o maravilhoso do momento. Só consegui ficar ali, a olhá-los. A todos, velhos e novos. E a ter a consciência de que sim, realmente é deles o reino dos Céus. Vi um bocadinho do paraíso no meio da dureza do mundo. Vi Deus, não na abundância, mas na falta. Porque é mesmo aí que está, naquela gente que mesmo na pobreza conserva um coração agradecido e bondoso.
Percebi, de modo até um pouco doloroso, que tenho um estar algo diferente. Digo doloroso porque, para além de certos detalhes que merecem ser contados pessoalmente, essa é a maneira que a vida tem de me ir mostrando caminho. E isso é muito bom mas assustador. Porque me faz ver que fico imensamente, e acreditem amigos que é mesmo mesmo imensamente, feliz por estar ali. E isso deixa-me atordoado. Há experiências fortes que nos deixam atordoados. Esta foi uma delas. E na verdade, foi uma resposta a perguntas que evito colocar. Quando as maravilhas do mundo vêm ter connosco, não podemos mais que aceitá-las, na sua grandeza e mistério. E calarmo-nos, porque Deus está a passar. Tantas orações vazias e secas, e eis que ali, no meio do mato, muito me esperava. Estes dias têm-me mostrado quem sou. Agora seja eu capaz de o viver.
E agora, já noite, sentado na cama, de computador no colo, releio isto tudo e vejo que falta muito. Faltam muitos olhares, expressões, paisagens, tempo, movimentos, crianças. Sorrisos. Falta a expressão do avô, que ao cantar uma canção religiosa, de acção de graças, acompanhado em cadência pelas mulheres, ficou de lágrimas nos olhos. Como cantava com alma e com verdade, e com que expressão! Uma voz baixa, quase rouca, em sintonia com a paisagem seca e contínua em redor. Esta simbiose entre paisagem, carácter da natureza e a música, aqui, fascina-me intensamente. Uma certa aspereza balanceada com uma cadência rítmica suave, quase maternal. Embala, dá vida e horizonte.
E assim vou adormecer, com estas memória presentes. Hoje, de volta, o padre ítalo perguntava o que recordava da visita. Na altura, em que não conseguia recordar nada porque ainda vivia tudo, disse que tinha ficado emocionado. Agora recordo que me vou lembrar durante muito tempo desse passeio mato adentro. Tal como os dias em Macasselane, que fazem já parte de mim e do mundo que descubro. Pois não é irónico que ao vir para ajudar alguma coisa, sou eu ajudado a perceber a minha vida? Que ao ir ter com as pessoas são elas, sem saberem, que vêm ter comigo, em encontros cheios de significado? Que ao fazer sou feito?
E como são únicos estes percursos ao encontro dos outros, em que o que há de mais profundamente humano é mais forte que tudo o resto. Em que um olhar e um tempo de silêncio nos dão a conhecer como raras vezes nos deixamos ver. Porque comunicamos o essencial sobre nós, o que nos anima e enche a alma, o que necessitamos, o que esperamos, o que vivemos. E o que é profundamente humano é profundamente divino. É uma espécie de relíquia. São encontros de um valor tal que não se esquecem facilmente. Como Macasselane, referência fundamental neste momento na minha vida. Só o estar lado a lado em silêncio é tão bom. Porque é que o mundo não se encontra assim? Sem mais expectativa senão o próprio encontro?
Bem, tanta palavra para quase nada. Porque tudo resumido, bem resumidinho, dá apenas isto: ando a viver tão intensamente tantas experiências porque ando a encontrar a minha vocação na vida. Só não esperava alguns pormenores, mas de resto sinceramente não é nada assim tão novo. Apenas a intensidade e a clareza dos significados. Mas isso é este modo moçambicano de dizer que chega o tempo. E como este sol que vi hoje nascer: não há espaço para muitas dúvidas, porque tanta luz e calor só pode ser coisa boa que aí vem.
Por isso venham caminhos mato adentro, que eu os espero, para percorrê-los com expectativa e alegria.

4 comentários:

Anônimo disse...

Também eu,sentada em cima da cama,com o computador no colo...leio o que escreves e recebo Vida. Vou imaginando...e chego ao fim feliz e com a lagrima no canto do olho.
Beijos

Anônimo disse...

um abraço bem forte.
1sorriso.

Anônimo disse...

"Estes dias têm-me mostrado quem sou. Agora seja eu capaz de o viver."
Pois fica sabendo, krido amigo, q esta partilha de experiência e reflexão, por ti aqui tornada possível, muito tem contribuido para m ajudar - a saber um pouco melhor "quem sou", a encorajar-m a "sê-lo".
Bom!!!... Não é que m proporcionas a rara possibilidade de utilizar, com propriedade, a expressão «BEM HAJAS»
jnhus saudosos :o)

ritacatita disse...

Olá Pedrocas,

a tua escrita corrida transporta-nos para a história de um livro. E quando acabamos de ler ficamos mais ricos e preenchidos que nos faltam as palavras. Demora para digerir. Há dois dias que digo para mim própria:"tenho k escrever ao pedro, isto é puro egoísmo, só ler, ler e não dizer nada!". E sabendo o qt é importante o nosso feed-back. E lembro-me k a dada altura dizes que foste a áfrica para dar e k estás a receber. E nem sequer te apercebes o qt nos dás ao lêr-te, nós k t damos tão pouco em troca! É sinal k nós damos mesmo qd pensamos que estamos somente a receber! O que é fantástico!
Em relação ao momento raro que vivenciaste é bom sinal k t tenhas esqueçido da máquina é pq o estavas a viver a 100% e não só a observar.
A certa altura dizes "e o k é profundamente humano é profundamente divino" - concordo, o divino não é nada k nos trans cenda.

e se um dia não tiveres emprego podes sempre escrever pq tens jeito p nos deixar c várias lágrimas ao canto do olho.

força aí
estás no caminho certo
bjs afros