sábado, 30 de agosto de 2008

várias memórias, enviadas já da grande cidade de Maputo!

27.08.08
hoje tem sido um dia diferente. Não fui trabalhar para Macasselane, o que me pareceu pouco vulgar, porque a rotina instalou-se, e faltou-me de certa maneira aquele belo caminho matinal, entre as árvores e o horizonte aberto dos campos baixos, com arvoredo ao fundo, e aquela bonita luz do nascer do dia, com o sol a abrir caminho por entre a neblina da manhã. Bem, hoje também não seria assim, porque o dia amanheceu cinzento, quente e húmido, e apenas lá para o fim da manhã se viu a luz do sol. Mas mesmo a tarde tem tido muitas nuvens e nevoeiro à mistura. Próximo já que estou da partida, preparo algumas coisas que faltam ainda, para amanhã o dia ser de despedida em Macasselane, e aqui em casa. Sexta pelas cinco horas saímos de chapa para Maputo. Chapa aqui quer dizer um pequeno autocarro. Alguns têm horário, outros ficam à espera até encherem, o que me faz lembrar a Índia, sem, no entanto, aqueles homens pendurados na porta a gritar o destino do autocarro. Aqui o ambiente é mais musical e menos vocal, com uma bela aparelhagem muito acima do possível tecnicamente.
Manhã passada em voltas, tratando de assuntos que quero ver tratados antes da partida. Felizmente no meio de alguns acontecimentos complicados, a vida aqui encarrega-se também de trazer novidades boas, esperanças e mudanças. Logo de manhã, Concelho Municipal. Tive de escrever um pedido para mandar fazer uma campa simples na sepultura do pequenino Pedro. Três idas depois lá consegui ultimar (utilizando a expressão daqui) o necessário requerimento. Depois passei pela Cruz vermelha, que aqui tem um centro ortopédico, dos melhores do país, que tínhamos já visitado uma vez. Temos uma menina aqui nas refeições em Manjacaze que tem um problema numa perna, e é trazida sentada num carrinho pela irmã mais velha. Sabemos que foi operada em bebé em Maputo, mas uma das pernas está paralisada. Vamos levá-la ao médico e á fisioterapia. Falando com a médica e com o director da cruz Vermelha daqui é possível arranjar alguma tala, ou muletas, ou algo, que a faça poder andar sozinha, e fisioterapia para corrigir a postura e aliviar as dores. Isso é muito bom. Temos também um menino novo connosco, primo do pequeno Ítalo, que felizmente veio para cá numa situação de desnutrição ainda não muito grave. Está a ser acompanhado, e bem, por nós e pela médica. Os efeitos da fome numa criança são inimagináveis para quem, como eu há umas semanas atrás, não conhece a realidade de perto. Vai muito para além das imagens que as televisões teimam em passar de África. Não é só uma barriga inchada, mas deformações nos ossos, cabelo a mudar de cor (imaginem que esta criança, que tem o nome de Pequenino, o que por agora até fica bem, mas daqui a 20 anos talvez seja um pouco inadequado, tem cabelos aloirados. Sim, é castanhinho mesmo escuro…com alguns cabelos claros.). E sobretudo, e isto é de longe o que mais interroga, um olhar vago, um corpo sem reacção a estímulos, uma mão mole, que não agarra nem prende, e uma tristeza profunda no rosto e no olhar. Ver uma criança profundamente triste é algo inusitado, não natural, contra as leis da vida. Ver o olhar fixo apenas numa coisa, na comida no prato. Não se esquece facilmente esta expressão de uma vida a implorar por algo para comer. Mas o bonito é que, 2 dias depois, já anda, brinca, ri, balbucia. Dois dias apenas!
Aqui do Centro Nutricional a maior alegria é o Vânio. Nas primeiras duas semanas sempre que eu aparecia na sala ao jantar, ele chorava de maneira tal que eu tinha de sair. Agora, com o tempo, e umas visitas ao hospital quando esteve internado com malária, quando me vê ri, brinca, com um olhar muito vivo, brincalhão e maroto. Até os olhos estão mais brilhantes. Não é que me vou embora com esta boa recordação? Fico feliz.
Muitas situações têm passado à nossa frente, algumas ainda por percebermos como ajudar, outras em que vamos fazendo alguma coisa, em busca de soluções. Uma rapariga, dois anos mais nova que eu, com três filhos, um dos quais este Pequenino, que há poucos anos teve uma desequilíbrio mental grave e vive em condições sub-humanas. Amanhã vai ser visitada pelas equipa aqui do hospital que vai à aldeia onde mora. Há esperança. Duas irmãs, a Rosa e a Sonjenete, que carregam água no mercado para terem dinheiro para comer, porque a mãe está doente e a machamba está seca com a falta de chuva. Há também esperança, porque começámos um apoio que as liberta deste trabalho difícil e injusto. Muitas histórias de vida de quem luta a sério por sobreviver.
Ainda na segunda-feira, à vinda de Macasselane com o fr. Xavier, encontrámos uma família que trazia uma vovó que tinha tido alta do hospital mas que ainda não conseguia andar bem. O local onde os encontrámos, e lhes demos boleia para casa, está a uns 5 km da vila. Traziam a vovó num carrinho de mão, por não terem mais possibilidade nenhuma. 5 km a puxar um carrinho de mão com uma pessoa doente dentro.
Aqui assistimos a experiências inimagináveis. Mas o que me deixa sem palavras é ver como aguentam estas pessoas tanta dificuldade, tanto esforço para tudo. Ao mesmo tempo é uma Graça poder ajudar, contactar com esta realidade, abrir caminhos, ser sinal de que as coisas podem ir mudando. E o mais misterioso é que mesmo estas realidades difíceis, quotidianas, dão alento para trabalhar. Vinha a falar precisamente disso com o fr. Xavier quando encontrámos aquela família. Ao voltarmos, olhámo-nos os dois, como quem diz: ora aqui está o que falávamos. Deus aqui é directo, claro. Põe-nos as respostas à frente, sem meias medidas. E dá-nos a responsabilidade de actuar.

29.08.08
Ontem, quinta-feira, despedida de Macasselane. Um dia emocionante, emocionado, vivido com muita intensidade. Sobre este dia, e os momentos de convívio, alegre mas já um pouco triste, pela despedida eminente, escreverei quando conseguir dizer-me a mim próprio o que significa para mim. Ainda é muito cedo, ainda ando a tentar perceber todo este tempo, que por agora tem um intervalo, um fim, uma etapa nova. Sei apenas que me deixou profundamente, mesmo muito profundamente comovido, não de modo choroso mas como quando se olha algo que não se compreende de tão bom que é. Claro que os olhos ficaram desfocados, a voz um pouco trémula e muita coisa se calou por saber que não seria fácil dizê-lo. Por isso foi a despedida possível. Mas acima de tudo foi um grande encontro. Não um adeus, mas, à maneira moçambicana, um “estamos juntos”. Terei saudades, melhor, sentirei falta, do caminho até Macasselane, de conversar e rir com o fr. Xavier, e de tudo o que tenho registado, e muito mais que anda pela memória. É impressionante como podemos ficar tão ligados a lugares e pessoas em tão pouco tempo. Mas a intensidade com que tenho vivido tudo é tal que me deixa marcas fortes. Um silêncio pouco silencioso teima em aparecer. Imagens, sons, sentimentos aparecem como se o que tenho cá dentro teimasse em não desaparecer. Sei que não desaparece. Sei que tive o enorme privilégio de viver algo muito bonito e bom. E saber isso deixa-me tão feliz.

Ao mesmo tempo que ainda vivo tudo isto, hoje foi a fatídica manhã da despedida de Manjacaze. É verdade.
Destino: A grande e mítica cidade de Maputo.
Ainda brinco com a Tassy que para mim será sempre Lourenço Marques, mas essa é a grande vantagem de nascer um mês após a independência deste grande país. Posso brincar com memórias históricas com a liberdade apenas possível por quem não as viveu. Ainda bem que é Maputo, moçambicana, quente, cheia de vida e pessoas.
Mas antes a memorável viagem de chapa. Ora um chapa é um mini autocarro, com teoricamente 13 lugares, mas onde à vontade cabem 18 pessoas, mais cobrador de bilhetes, mais malas e malas e sacos. Ora cá viemos nós aconchegados, entre braços, pernas, bancos pouco sólidos, costas pouco direitas e bagagem até ao pescoço. A boa notícia foi a paragem técnica para mudar de pneu. Abençoado furo, que nos deu tanta alegria! A chegada a Maputo passa por uma zona enorme de mercado de rua. Lá ficámos nós na Junta, apanhando outro autocarro até ao centro da cidade. Agora sim! Em pé, mas de pescoço altivo, cabeça erguida e espaço para mexer! E seguidamente outro chapa, mas desta vez por pouco tempo, até aqui a casa. A tarde foi passada a passear de carro pela cidade, a marginal junto ao Índico e à foz do rio, a Baixa da cidade, de avenidas largas, com árvores, muitos prédios altos, muita gente e muito trânsito, a costa do Sol, junto ao mar, e a zona da Polana. Maputo tem muita arquitectura dos anos 50 e 60, que na sua maioria acusa o peso da idade, mas com um ar moderno e inesperado para uma cidade africana. Nota-se que nesta altura seria uma cidade bastante vanguardista em termos arquitectónicos. O carácter moçambicano, no entanto, toma conta de tudo e dá à cidade um carisma livre e solto, libertando-a de uma personalidade europeia, num tom movimentado e feliz. Esta maneira de andar pelas ruas, este barulho, esta vivacidade das pessoas é contagiante, e felizmente perverte o carácter algo organizadinho do urbanismo. É uma grande cidade! Avenidas largas ensombradas cheias de gente, um ar internacional na mistura de gente, um dinamismo crescente, este barulho de fundo que se ouve a partir da janela aberta do quarto. Fascinam as perspectivas largas das grandes avenidas, com os prédios mais altos a balançarem a horizontalidade da vista, e descer a av. Eduardo Mondlane sabendo que lá no horizonte estará o Índico!
A arquitectura moderna, cheia de esperança e largueza de horizontes finalmente cumpre os seus desígnios. Certo, com as cores algo desbotadas, mas o futuro está aí, e a cidade parece ter-se levantado para os dias que virão, em que as utopias da cidade para um novo homem se realizam. O melhor, e mais sedutor, é que isto acontece de um modo novo, em que ao rigor do traço dos edifícios, de sentido europeu, corresponde um céu africano, uma cidade humana diversa e tropical, uma moçambicanidade que dá a volta a tudo. E o que nos parece ao primeiro olhar uma cidade europeia deslocada no espaço surge com o tempo como uma outra maneira de estar no mundo e de viver a modernidade ainda por cumprir. Tudo ganha vida.
Que diferença de Manjacaze, já para não falar de Macasselane! Sinto-me me um pouco como alguém que vem á grande cidade pela primeira vez. Saímos de carro e eu todo contente por passear por aqui, cabeça de fora e a dizer uau a tudo. É uma cidade interessante para viver. Quem sabe.
A dias de distância da viagem de regresso é aqui na capital que agora começo a olhar para trás e ver todos estes dias, manhãs, tardes, anoiteceres, noites estreladas, conversas, olhares, trabalho, sentimentos, alegrias, tristezas…Maputo é de certo modo uma porta, que quase se fechará quando descolar rumo a Norte. Mas até lá ainda há muito para aproveitar. Viva Maputo!

2 comentários:

Unknown disse...

Querido, tenho lido maravilhada as tuas mensagens, princialmente o deslumbre e a alegria na tua voz. Que bom!!
Beijinho saudoso com o pôr-do-sol do Mandovi,
C

ritacatita disse...

sem palavras ficamos nós...e com um nózinho na garganta!!
olha, vou ser sincera, não sei k te diga depois de tudo isso!! Que somos uns tremendos de uns egoístas neste mundo de facilidades que nos vendam os olhos à dura realidade!! Até custa saber que és quase obrigado a voltar de tanta vontade de continuares a enriquecer-te por dentro mas que essa obrigação do regresso seja por nós todos que te esperamos no cais deste ínfimo país!

bem hajas

RC