sexta-feira, 1 de agosto de 2008

o Céu tem mais um anjo

31 de Julho de 2008
Notícias boas: manhã em Macasselane. Muito boa. As crianças começam a ter mais á vontade comigo, continuo a aprender changana com as mamãnas. À tarde mostrámos as fotografias que tirámos de manhã aqui na escolinha. Os meninos gostaram, e realmente, depois, pela primeira vez, chamavam-me, tocaram-me, puxaram-me os pêlos das pernas, punham os dedos nas lentes do óculos, abraçaram-me. Aproximaram-se depressa, e tudo isso despoletado por uma sessão de fotografias em grande dimensão, projectadas na parede de uma das salas! Viva a tecnologia! E a vontade de comunicar destas crianças, que finalmente desbloqueou a timidez, delas e a minha.

Notícia triste:
A Maria Isabel foi para o céu. Fazia amanhã um mês. Chegou aqui ao centro nutricional com quatro dias, com a avó. Estava já muito debilitada, e ontem tivemos a graça de ela dormir em casa das irmãs. Depois do jantar ainda estivemos com ela ao colo, e tirámos fotografias, e ainda nos rimos com a vontade de dormir que ela tinha e a nossa preocupação em ver se respirava e estava bem. Morreu esta manhã no hospital aqui de Manjacaze, sem se saber ao certo a causa de tanta debilidade. Era muito pequena e frágil. Mas tinha um olhar aberto, que foi ficando cada vez mais difuso. Até que, rodeada de enfermeiros e médicos, partiu.
Foi embora tendo a sorte que muitos não têm, de deixar este mundo rodeada de carinho e ternura, bem alimentada e com muitas pessoas boas a cuidarem dela. Ao menos foi perdendo a vida no meio de abraços e mimos.
Ao sair de Macasselane com o fr. Xavier encontrámos as irmâs, que levavam os avós de volta a casa, com a criança. Doeu, olhar e ver os avós com a cesta no colo, e saber que ali estava uma criança de quem custa muito despedir. Está já de olhos bem abertos abraçada pelo Pai.
Sinto que não compreendi verdadeiramente o que aconteceu, porque, para além de uma tristeza grande, não consigo exteriorizar muito o que sinto. Talvez demore a chorar. Talvez porque aqui, como em tantos outros sítios, os dois lados da vida, o nascimento e a morte, estejam sempre muito presentes. Não é raro encontrar crianças orfâs, o que nos coloca sempre em relação com realidades muito mais comuns do que se deseja. A vida anda assim, um pouco balanceando entre dois lados opostos, a alegria e vivacidade de muitas crianças, por um lado, e a Via Dolorosa de muitos. Nada é certo, e por vezes o equilíbrio parece uma fronteira muito frágil e delicada. A vida está presente com intensidade nos seus múltiplos aspectos. Parece-me, paradoxalmente, mais verdadeira, no sentido em que nem com as tecnologias importadas nem um consumismo crescente é possível abafar a dura verdade por que passam muitas pessoas. Nós esforçamo-nos muito por tornar invisível a faceta mais difícil da vida, aqui isso é completamente impossível. Esse confronto, para os poucos privilegiados como eu, tem no entanto, a capacidade de espevitar, acordar, esmurrar. Acorda rapaz! Olha a vida! E como pode ser boa ou difícil.
Hoje sinto alguma raiva, o que não é assim um sentimento muito cristão, mas enfim…porque é mentira. É mentira o que nos passam o tempo todo a dizer. É mentira que as cores da moda nos fazem sentir felizes. É mentira que um trabalho de sucesso nos realize. É mentira que somos bons, belos, fantásticos. É mentira que somos mais se esbanjarmos na altura dos saldos. É mentira que um iogurte nos faça termos uma família unida e sorridente. É aldrabice a globalização, a sociedade de informação, a comunicação, o desenvolvimento económico. Mentira, mentira, mentira. É que eu, de vez enquando ainda acredito! Que parvo.
Será, sim, desenvolvimento, quando se tornar outra coisa radicalmente diferente do que é. Quando o consumo nos deixar espaço para perceber que faz exactamente o contrário do que nos afirmam. Fecha, em vez de alargar horizontes. Explora em vez de nos libertar, disfarça tristezas em vez de nos tornar felizes. E o que nós temos, amigos, parece-me que vem em grande parte do que outros não têm. Haverá razão, lógica, racional, emotiva, qualquer tipo de razão, que justifique, sem desculpas ou teorias macro-económicas de conjunturas planetárias, as desigualdades existentes? Não.
Então se não há razão, como é que isto tudo ainda continua assim?
Falha nossa, minha, de todos.

Ando a ver se não falho muito. Por aqui, a vida encarrega-se de me mostrar uma espécie de avaliação, para a ter presente no lado confortável da vida, e me lembrar que não é só aqui que posso cumprir um pouco a minha missão. É em qualquer lugar, em qualquer tempo, circunstância, trabalho. Basta ter um pouco de ética, essa sim, globalizada e de conjuntura planetária, de consequências internacionais, abranjendo todos os intervenientes. Basta mudar o sentido, as palavras do discurso pode ser as mesmas. Irónico, não?
Sendo agora noite, hora do sono, calam-se agora os textos, e venha o descanso. Amanhã é outro dia, cheio, milagrosamente, de risos, brincadeiras, e muitas barriguinhas cheias.
Aleluia. Verdadeiramente aleluia, porque a esta hora a pequena Maria isabel já ressuscitou.
E nós cá continuamos, a presenciar a mão misteriosa e desconcertante de Deus, que se mostra precisamente onde é menos óbvia e esperada. Kanimambo.

3 comentários:

leiteazedo disse...

BRAVO!
Gosto dessa raiva. Muito bem! Ora estava a ritacatita a falar em catarse e vai que o menino…. para quem não consegue expor sentimentos, não se saiu nada mal.

Pois olha, que assino em baixo, à tua declaração sobre as mentiras. São tudo mentiras. Apenas não concordo quando dizes que “É mentira que somos bons, belos, fantásticos. Meu caro Andarilho, somos todos bons, belos e fantásticos. Não somos é melhores, mais belos e fantásticos do que os outros.

Perdoai-me a discordância.

E para quando imagens? Se precisares de ajuda é só dizer…

ritacatita disse...

Estou a gostar dessa raiva também, vale pela sua veracidade!!
Confessa lá à gente: tu já sabias que se fosses a áfrica já não voltavas o mesmo?!! Espertalhão o moço!! Sabe-la toda!!
Admite lá, só aqui para os amiguinhos!
Foi intuição! Foi não foi?????
Também concordo com o "leiteforadoprazo" ninguém é melhor que ninguém e ninguém é só bom ou só mau. E quem faz de tudo para só mostrar o lado bom é porque tenciona ser supeior aos outros! E só isso já é mau!!
Essa das fotos projectadas na parede é muito à frente para áfrica profunda - fico à espera de uma explicação técnica ó fotógrafo!!!
E imagens que é bom...nada!!!

Mas deixa lá que os teus textos têm-nos feito "imaginar" imenso mais do que qualquer imagem.

abraços afros
inté

RC

filhadovento disse...

Quem vive longe da natureza das coisas terá uma vida mais suavizada mas também não lhe pode sentir o sabor em toda a sua plenitude; o sabor a fel e o sabor a mel. De tudo o que existe na vida é o afecto que nos faz sentir pertença do mundo. Reflectir é algo quase impossível no meio do ruído que nos afecta. Experimentar o silêncio ajuda-nos a pensar - o pensamento impõe-se no silêncio. Sabermo-nos despir e deixar só o essencial. Olhar de frente para a vida e para a morte.

Os pensamentos surgem no silêncio como bolhas de ar libertas debaixo de água.

O Homem volta-se muitas e demasiadas vezes para a sua própria natureza, esquecendo-se da mais vasta natureza que o rodeia.

Tenta esquecer, branquear, iludir a morte. Mas é na consciência da volatilidade da vida que descobrimos aquilo que realmente é essencial e, no ponto em que me encontro da minha consciência, penso que o afecto é o que temos de mais sólido, de mais forte - o que nos dá força para crescer, para viver, o que nos faz sentir pertença de uma família que é a nossa porta para o mundo.